1
À esquina ela em pé, distribui o papel que convida as pessoas a fazer o empréstimo de hum a cinco mil reais e que se paga em prestações até 36 meses.
Sorrindo indaga:
- Empréstimo senhor?
A mão que se estende com o papel e a outra mão do pedestre que o recebe e passa ligeiro, integrado às obrigações do difícil cotidiano.
- Obrigada. O meu nome está aí, com o celular.
Sem se voltar, o homem distancia-se, segurando o papelzinho.
Ela se prepara para a nova entrega.
- Empréstimo senhora?
A mulher mulata, gorda pára e recebe a propaganda.
- Obrigada senhora. Tenha um bom dia.
A outra se afasta, em passos miúdos, cautelosos.
Pela avenida defronte, os veículos transitam, em número que cresce à proporção que a manhã se adianta.
Buzinas. Zoada de escapes. Vozes em xingamentos. Pedestres na calçada oposta e nessa, onde ela, a adolescente está.
- Empréstimo meu tio?
A mão trêmula aceita o papelzinho. E mais uma vez, o sorriso e o agradecimento:
- Obrigada. Meu nome tá aí com o celular.
Ah, esse meio de ganhar dinheiro é estafante! Se não fosse a necessidade que tem da “grana”, para ajudar a mãe viúva e os dois irmãos pequenos... Sim, a pobreza obriga-a a se expor assim de pé, à esquina, oferecendo o “comércio” da Casa Loteria próxima. Mas, lutará para conseguir uma nova ocupação, na qual fature mais, não se entregue a essa humilhação de ficar durante horas de pé, numa esquina, como garota-propaganda. Um dia estará “noutra”. Valorizada. Ganhando mais, encarando o mundo de frente, como num desafio.
Sim, um dia será tudo diferente..
- Empréstimo meu tio?
2
Na cadeira de balanço a velha senhora fala, num desabafo, como vem acontecendo ultimamente:
- Ah, menina, sofri muito! Na sua idade – poderia ter aí uns doze pra treze anos – ficava numa esquina, oferecendo às criaturas que cruzavam a calçada, um papelzinho num comercial de empréstimo para se pagar em prestações...
Pausa. A cadeira ao impulso das mãos ossudas sobre os braços laterais vai para frente e para trás, numa cadência devagar, ritmada.
Na cadeira defronte, a adolescente escuta o desabafo. Calada. Respeitando-lhe a idade, as recordações dolorosas e que por isso mesmo, tanto marcaram a vida da avó.
- Você Aninha, tem de tudo, graças a Deus! Não precisa passar pelo que sofri.
Novo impulso com as mãos e a cadeira indo e vindo, na cadência igual, repetitiva.
- Mas, minha netinha, assim é a vida. Acredito mesmo em destino. Cada um tem de cumprir uma sina. Parece que quando se chega ao mundo, já se vem com tudo traçada. Determinado. Daí as desigualdades sócias... Na realidade, creio que ninguém tem culpa de nada. Somos predestinados por uma Força sem tamanho.
Fecha então os olhos e silencia.
Cochila? A neta se ergue da cadeira e em passos cautelosos se ausenta da varanda.
A avó está cada vez pior, com essa de se lembrar do passado... Tá esclerosada! O que é a idade avançada, com a velhice...
- Aninha, mãe tá cochilando?
A voz que a traz ao presente e a resposta, também numa repetição:
- Tá. Falou, falou e tá agora cochilando...
- Pobre da mãe: alimentando-se do passado!
Será que com os demais velhos isso também ocorre?
Aninha se impacienta:
- Vou tomar o meu banho e sair. Basta de “encucações”, coisas tristes. Por hoje já chega!
Cruza a sala e adentra no corredor, indo em sentido do banheiro à esquerda, enquanto sua mãe entendendo-a, sorri, compreensiva. Respeitando-lhe a descontração natural da idade. E se avizinha da varanda, numa preocupação, zelo de filha.
A cabeça branquinha. O rosto conservando os traços corretos, sereno. A respiração baixinha. Os braços longos, magros. As mãos ossudas. A pele manchada pelas sardas do tempo... A imagem da decadência, na velhice.
Sensibilizada, se mantém parada à porta da sala que se comunica com a varanda.
- Coitada da mãe...
Sente então de repente, uma “coisa”, que vai subindo, sufocando-a... Aí ergue a mão trêmula e esfrega os olhos, já embaçados das lágrimas.
Do banheiro chega à voz de Aninha, cantando sua realidade despreocupada de adolescente moderna. Pra frente.
Paulo Valença