domingo, 24 de julho de 2011

Empréstimo senhor?


1
À esquina ela em pé, distribui o papel que convida as pessoas a fazer o empréstimo de hum a cinco mil reais e que se paga em prestações até 36 meses.
Sorrindo indaga:
- Empréstimo senhor?
A mão que se estende com o papel e a outra mão do pedestre que o recebe e passa ligeiro, integrado às obrigações do difícil cotidiano.
- Obrigada. O meu nome está aí, com o celular.
Sem se voltar, o homem distancia-se, segurando o papelzinho.
Ela se prepara para a nova entrega.
- Empréstimo senhora?
A mulher mulata, gorda pára e recebe a propaganda.
- Obrigada senhora. Tenha um bom dia.
A outra se afasta, em passos miúdos, cautelosos.
Pela avenida defronte, os veículos transitam, em número que cresce à proporção que a manhã se adianta.
Buzinas.  Zoada de escapes. Vozes em xingamentos. Pedestres na calçada oposta e nessa, onde ela, a adolescente está.
- Empréstimo meu tio?
A mão trêmula aceita o papelzinho. E mais uma vez, o sorriso e o agradecimento:
- Obrigada. Meu nome tá aí com o celular.
Ah, esse meio de ganhar dinheiro é estafante! Se não fosse a necessidade que tem da “grana”, para ajudar a mãe viúva e os dois irmãos pequenos... Sim, a pobreza obriga-a a se expor assim de pé, à esquina, oferecendo o “comércio” da Casa Loteria próxima. Mas, lutará para conseguir uma nova ocupação, na qual fature mais, não se entregue a essa humilhação de ficar durante horas de pé, numa esquina, como garota-propaganda. Um dia estará “noutra”. Valorizada. Ganhando mais, encarando o mundo de frente, como num desafio.
Sim, um dia será tudo diferente..
- Empréstimo meu tio?

2
Na cadeira de balanço a velha senhora fala, num desabafo, como vem acontecendo ultimamente:
- Ah, menina, sofri muito! Na sua idade – poderia ter aí uns doze pra treze anos – ficava numa esquina, oferecendo às criaturas que cruzavam a calçada, um papelzinho num comercial de empréstimo para se pagar em prestações...
Pausa. A cadeira ao impulso das mãos ossudas sobre os braços laterais vai para frente e para trás, numa cadência devagar, ritmada.
Na cadeira defronte, a adolescente escuta o desabafo. Calada. Respeitando-lhe a idade, as recordações dolorosas e que por isso mesmo, tanto marcaram a vida da avó.
- Você Aninha, tem de tudo, graças a Deus! Não precisa passar pelo que sofri.
Novo impulso com as mãos e a cadeira indo e vindo, na cadência igual, repetitiva. 
- Mas, minha netinha, assim é a vida. Acredito mesmo em destino. Cada um tem de cumprir uma sina.  Parece que quando se chega ao mundo, já se vem com tudo traçada. Determinado. Daí as desigualdades sócias... Na realidade, creio que ninguém tem culpa de nada. Somos predestinados por uma Força sem tamanho.
Fecha então os olhos e silencia.
Cochila? A neta se ergue da cadeira e em passos cautelosos se ausenta da varanda.
A avó está cada vez pior, com essa de se lembrar do passado... Tá esclerosada! O que é a idade avançada, com a velhice...
- Aninha, mãe tá cochilando?
A voz que a traz ao presente e a resposta, também numa repetição:
- Tá. Falou, falou e tá agora cochilando...
- Pobre da mãe: alimentando-se do passado!
Será que com os demais velhos isso também  ocorre?
Aninha se impacienta:
- Vou tomar o meu banho e sair. Basta de “encucações”, coisas tristes. Por hoje já chega!
Cruza a sala e adentra no corredor, indo em sentido do banheiro à esquerda, enquanto sua mãe entendendo-a, sorri, compreensiva. Respeitando-lhe a descontração natural da idade. E se avizinha da varanda, numa preocupação, zelo de filha.
A cabeça branquinha. O rosto conservando os traços corretos, sereno. A respiração baixinha. Os braços longos, magros. As mãos ossudas. A pele manchada pelas sardas do tempo... A imagem da decadência, na velhice.
Sensibilizada, se mantém parada à porta da sala que se comunica com a varanda.
- Coitada da mãe...
Sente então de repente, uma “coisa”, que vai subindo, sufocando-a...  Aí ergue a mão trêmula e esfrega os olhos, já embaçados das lágrimas.
Do banheiro chega à voz de Aninha, cantando sua realidade despreocupada de adolescente moderna. Pra frente.

Paulo Valença

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Enganosa fuga


Os operários comentam o quanto o seu Jarbas é “gavião”.
- O homem é demais. Menina bonita termina “dando”, se não... Vai pra rua!
As gargalhadas de deboche, o machismo que impera no meio de pouca cultura, alheamento ao sentimento humano. A conversa continua, pois adoram contar proezas dos outros e também se vangloriar. E José, o negro magro, alto, impressor:
- Também Mulatinho, o cara é chefe, ganha bem, ainda é parente do pessoal da Diretoria...
O outro que é baixote, cabeça oval, raspada, a fisionomia grosseira sorri malicioso e silencia.
Bebem, sentados em bancos redondos presos à calçada estreita, debruçados no balcão também estreito que dá para o interior reduzido da barraca de Genuíno, o proprietário.
Pela rua que se interpõe entre o estabelecimento e as residências defrontes, passam carros, motos e ônibus, já em número reduzido ante o avanço da noite.
- Sabe José? Ele tá certo, aproveitar enquanto tem idade, saúde e dinheiro, tudo passa. É uma fase...
Mulatinho segura o copo e bebe devagarzinho, refletindo e, responde:
- É colega, aproveitar enquanto pode. Na vida, é mesmo como você diz, tudo passa...
Genuíno, homem alto, gordo, segue a cena, discreto. Conveniente. Respeita o “papo” alheio, faz parte de sua conduta comercial. Não misturar as coisas. Aprendeu com o mundo. Nada como a vivência para nos educar...
- Genuíno outra geladinha.
- Certo.
Então se volta ao refrigerador, abre-o, retira a garrafa e a põe sobre o balcão.
- Aqui a mais geladinha.
- Você é um arretado Genuíno! Prepara um “tira-gosto” pra gente.
- Que vai querer José? Tem “sururu-ao-coco”, “mão-de-vaca”, e “arrumadinho de charque”.
O negro sorri:
- Hoje a barraca tá completa, tem de tudo! Bota o “arrumadinho”.
- Vou esquentar.
A fábrica aí apita e operários cruzam a Portaria, em grupos, de regresso aos lares.
A parada dos ônibus se enche de repente com homens e mulheres à espera de condução.
Pela rua, o movimento dos veículos diminui.
- Tou pensando Mulatinho... A galeguinha bonita, uma novata gostosinha que tá saindo com seu Jarbas...
- Sim? O dinheiro José faz tudo. Uma menina daquela sair para fazer amor com um cara vermelho, gordo, baixote, feioso...
- É mesmo, o dinheiro faz tudo!
Genuíno então lhes interrompe a conversa:
- O “arrumadinho” no capricho.
- Ok Genuíno. E traz outra “lourinha-suada”.
Homens ocupam os outros bancos às laterais, e pedem bebida. Descontraem-se aos poucos.
Genuíno se move, apressado, atendendo-os.
A indústria convoca a nova turma através da sirene estridente, prolongada.
Quanta vez escutou-a no decorrer dos anos? Quantas vezes... 
- Tás aí calado, José... Pensando em quê, na “morte da borrega?”.
O sorriso como resposta e a mão que segura o copo, tomando a cerveja, na descontração de não pensar na mulher em casa, na cadeira de rodas...
- José pra mim tá bom. Vamos zarpar?
- Certo, Mulatinho.
Aí grita para Genuíno:
- Tira a conta da gente. Genuíno.
- Mas, vocês tão partindo? Hoje, tão muito fracos!
Então segura o bloquinho sobre a mesa ao lado, retira a caneta esferográfica do bolso da camisa e soma a despesa.
Maristela ainda tão nova... Maldita queda! A coluna afetada. A realidade cruel. Por que tem de sofrer com a mulher tamanha tragédia? Por quê...
- Aqui tá o gasto.
José desperta ao presente e quita a despesa, enquanto ao lado, Mulatinho sente-se bem, em paz com a noite, a vida, sob o efeito do álcool, que lhe entorpece a alma, numa enganosa fuga...
Afastam-se da barraca.
- Quer uma carona Mulatinho, meu carro tá ali no oitão da mercearia do Luis Carlos.
- Quero não, agradeço. Vou pegar o ônibus, vou direto pra “Linha do Tiro”.
 - Entendo. Até amanhã! 
- Até José, vai com Deus.
- Fique com ele.
Na rua um ou outro carro ou moto transita.
A madrugada se avizinha.
Da barraca de Genuíno vem a gargalhada alegre, na descontração da bebida.
José cruza a rua e se encaminha à direita, onde no oitão da mercearia, está o seu carro. E Mulatinho se direge à parada dos ônibus, na calçada oposta, à esquerda.
Maristela já está dormindo ou esperando-o chegar? Os olhos grandes, negros. O silêncio que diz tudo, na resignação à enfermidade...
Solta um palavrão, abre a porta do carro e entra, para ir ao encontro do que o aguarda, à cena de todas as sextas-feiras, de quando deixa o emprego, toma a cerveja em companhia do colega Mulatinho, buscando não pensar...
- Como se eu pudesse!
Liga o carro e sai devagar. Para que pressa agora?
Ganha a rua praticamente deserta.
No “abrigo” dos coletivos, Mulatinho espera a condução que tarda, como sempre.
- Esses ônibus demoram demais!
Reclama a operária morena, envelhecida ao lado.
Mulatinho aquiesce, solidário, colega da fábrica e dessa espera enervante.
- E o que é pior é que não se ver nenhuma solução.
- Também seu Mulatinho, o povo não reage a tudo se acomoda...
- É isso aí, infelizmente.

Paulo Valença


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sábado, 9 de julho de 2011

Os filhos da angústia


1
Estaciona o automóvel. Salta. Em passos decididos se aproxima da mesa recuada, próxima ao balcão.
Puxando a cadeira, senta-se.
O garçom Ivan então se achega, sorrindo:
- Vai querer a dose agora doutor?
Ele sério, sem erguer o rosto responde:
- Traga. Reforçada.
- Tudo bem.
O garçom se afasta e debruçando-se sobre o balcão, solicita a dose ao gordo Manuel, o proprietário.
Fora a noite envelhece indiferente a tudo, na marcha natural de sempre.
Logo, o homem toma a bebida devagar. Pensativo. Quanta vez já freqüentou esse bar assim à noite de sexta-feira? Quanta noite ainda aqui chegará, para beber, na busca de esquecer a semana trabalhada, relaxar e evitar (como se pudesse!) o retorno à casa, com a esposa silenciosa, magra, num rancor que ele não sabe o motivo, numa esquisita e doentia indiferença a sua presença?
- Tudo bem Glória?
- Tudo.
A voz esmorecida. O rosto fugitivo. O olhar ausente... Sua mulher está doente. Sim, a maneira como está se portando não é normal. Precisa levá-la ao médico, antes que...
- Esquece cara. Por enquanto, esquece!
Explode a angústia e, num gole rápido, tomando a bebida, esvazia o copo e acena ao Ivan, pedindo outra dose.
As mesas vão se enchendo de casais, na maioria de jovens. As vozes, o tilintar de talheres, o arrastar de cadeiras se faz ouvir num som que ganha o ambiente de descontração.
- A dose doutor.
- Certo Ivan.
O garçom espera. Conhece bem como ele procede após a primeira dose.
- Traga-me um prato com camarões grelhados.
Ivan sorri, aquiescendo, e retira-se, indo outra vez ao balcão. Sim, precisa servir bem ao homem, pois depois terá a gorjeta que compensa o empenho do atendimento.
- Seu Manuel, camarão grelhado pra o doutor ali.
- Certo, meu rapaz.
Então se volta à abertura na parede em formato de janela e grita:
- Sai um prato de camarão grelhado!
As vozes. As risadas. O tilintar dos talheres. O arrastar de cadeiras. Tudo prossegue num som pesado que domina o ambiente.
A Glória estará acordada, na sala, defronte a TV, na repetição das sextas-feiras anteriores? Provavelmente encontrar-se-á... Por que de repente a nossa vida se altera, na metamorfose que nos faz sentir pequenos ante a própria angústia? Ah, o ser humano é mesmo pequenino...

2
Ela chega e ocupa a mesa logo a entrada do bar-restaurante. Com disfarce analisa o ambiente de mesas com casais, na maioria adolescente. Estuda quem a agradará como parceiro do amor e, se descoberto, então, com o charme de mulher jovem, morena e bonita tentará seduzi-lo ao leito do motel próximo, a beira-mar. Sim, é uma profissional do sexo, do pecado.
As noites de sexta-feira são as da caça, na guerra pela sobrevivência material.
Ivan atento ao seu trabalho de servir, aí se avizinha e, sorrindo:
- Vai querer o quê moça?
Ela se volta, também sorrindo e, com os olhos negros, grandes, fitando-o:
- Me traga uma cerveja bem geladinha e uns bolinhos de bacalhau.
- Tudo bem.
Retrocede ao balcão, onde pedirá ao patrão o solicitado pela jovem morena, bonita, tipo beleza nacional.
- Diga Ivan.
- Uma cerveja no “ponto” e um pratinho de bolinhos de bacalhau.
- É pra já, meu rapaz.
As mesas cheias. Os casais alegres, curtindo a noite que já vai alta. Tudo numa seqüência conhecida. Será que perdeu a viagem, a conquista programada? Os olhos analíticos procuram. E, de repente, param no homem solitário à mesa recuada, próxima ao balcão. Alourado. Magro. Bem vestido. Os gestos calmos. O rosto tristonho. A dor se exibindo, disfarçando. A mão que ergue o copo. Os olhos que se voltam e... Encaram-na numa indagação.
Ela sorri. Entendendo-o. Vencendo-o.
- A cerveja e os bolinhos moça.
A bandeja com a bebida e o prato como o “tira-gosto”.
- Sim, ponha na mesa.
Ivan assim procede e mais uma vez se ausenta, entregado ao trabalho de atender aos freqüentadores, os donos das sextas-feiras, no Bar Recanto do Lalau.
O alourado erguendo a mão, faz o gesto de indagar se pode vir para a mesa e a morena sorri, balançando a cabeça, aquiescendo.
Sim, a conquista está garantida. Ganhou a sexta-feira.

3
De repente, como se despertasse para o mundo prático, ela se indaga, preocupada. Por que Rivaldo demora em chegar, terá lhe acontecido algo? Com tanta violência... Mas, ele não tem o celular para lhe avisar de qualquer anormalidade? E também lhe vem de súbito, o vazio que ultimamente sente de tudo, como se a própria existência não mais lhe tivesse sentido, como se vivesse sem um objetivo...
Ergue-se nervosa do sofá e na varanda do primeiro andar se debruça no parapeito, buscando ver o carro prateado chegando, o portão se abrindo, trazendo o marido.
O frio circula. A madrugada vai alta. As mãos irrequietas penteiam os cabelos castanhos grisalhos para trás. Enerva-se. Uma coisa subindo, dominando-a... E, sem se conter, grita:
- Rivaldo!
Embaixo, na rua transversal, o automóvel prateado surge, com o homem sentindo-se outro, leve, após o prazer desfrutado no leito do motel com a mulher nova, morena, bonita.
Aí percebe na varanda, a figura magra, imóvel, como se fosse à encarnação da angústia.
- Coitada de Glória...
O portão então se abre e devagar o carro adentra.

Paulo Valença

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quinta-feira, 7 de julho de 2011

O mal renascerá?


1
No hábito costumeiro, debruçado sobre o balcão, seu Isaías fica pensando, enquanto os fregueses não chegam para beber, curtir a noite e a madrugada da sexta-feira, após os dias de trabalho dessa vida moderna, que nos deixa estressados. É, está ficando velho, amparando-se nas reflexões. Sorri ante a conclusão realista. A velhice...
O garçom Pedro no centro do salão, esfrega a flanela sobre o plástico das mesas. Cabisbaixo. Responsável. Digno sim, de um aumento no salário e gorjetas que recebe dos freqüentados do bar. Ótimo funcionário. Sim, terá de conseguir novo local para expandir o seu negócio, pois vai bem o seu comércio e depois dará o aumento ao Pedro, que continua a limpeza, apressando-se para dar conta da obrigação.
Fora, indiferente a tudo, à noite como é natural, dentro do tempo, amadurece. Na avenida entre o bar e a calçada oposta, automóveis, motos, bicicletas transitam. Nessa mesma calçada oposta, pedestres caminham apressados, como peças noturnas.
De repente, seu Isaías se lembra. A prisão do tarado sexual, aquele que assassinava as lourinhas bonitas nas madrugadas da sexta-feira, depois de lhes usufruir do corpo esguio, bonito...
Tudo agora lhe parece com um filme de terror, que chega ao final, com a prisão do maníaco. Quantas adolescentes o cara matou? Cinco. Cinco mocinhas com a vida praticamente pela frente! A maldade humana não tem limite. Contudo...
- Pensando no tarado que foi preso seu Isaías?
Ele desperta com a indagação do empregado que se aproxima, sorrindo, gozador, doido para levar um “fora”, contudo, também sorri e responde:
- Tava mesmo pensando Pedro. Quem diria hein? As bichinhas tão inocentes, perder assim a vida...
Pedro calejado pela vida então é prático:
- Patrão, essas meninas não são tão inocentes não: quando saem para “programa”, vão cientes do risco que correm, têm os exemplos estampados diariamente nos jornais, televisão!
- É, até certo ponto, você tá certo. Mas, mesmo assim, a gente não se conforma. Eu pelo menos, não me conformo. Acho horrível o ser humano judiar do semelhante, num sadismo inexplicável...
- Concordo.
Seu Isaías aí retorna à vida normal, como se fugisse se amparasse ao presente:
- Você terminou de limpar as mesas? Não? Termine rapaz a obrigação. Isso aqui, você bem sabe, não demora a se encher dos “boas-vidas” e, temos de faturar, a inflação tá “pegando!”
Sem nada dizer, o garçom retrocede às mesas, esfregando a flanela úmida de detergente sobre o plástico branco, tirando-lhe manchas.

2
O automóvel cinza-prateado ganha a avenida, afastando-se em velocidade, aproveitando o vazio da mesma, devido à hora avançada da madrugada.
À direção, o sujeito grande, forte, mulato vai suando as mãos trêmulas, de dorsos frios. Procura o local para a “desova” do corpo que conduz no porta-malas do carro, numa repetição das cenas anteriores, das sextas-feiras, quando após usufruir em poses carnais, dos corpos esguios das jovens louras, as estrangula de repente, sob o comando de uma força que lhe ordena essa prática.
Sim, reconhece estar doente, servo do poder demoníaco.
- Estou “fora”, muito doente!
O grito como numa justificativa aos assassinatos que pratica. Dirige. A fisionomia transtornada. Os traços mais grossos, mais acentuados. Os olhos dilatados. O coração aos pulos. A respiração acelerada. Onde estacionará?
Mantendo distância, o outro carro segue esse do mulato.
Dentro, os dois homens estão calados, integrados à prisão que se efetuará, pois, após diligência, sabem que o maníaco sexual vai adiante, com a nova vítima adolescente, loura, bonita, na mala do automóvel. Apesar de policias experientes, sempre ficam perplexos com a detenção que fazem assim de repente, no cumprimento da lei.
Atentos, estudam o movimento do carro que agora dobra a curva da rodovia isenta de outros veículos. Diminuem a marcha.
Então o homem que vai à direção, sargento Marcelo, fala para o auxiliar, ao lado, o soldado Carlinhos:
- O cara parou ali. Agora, deve “desovar” a guria.
- Também acho sargento. Deixa ele abrir a mala que a gente chega e agarra o safado! Um doutor fazer isso... Miserável!
- Pois é, Carlinhos. O ser humano é capaz de tudo. Envelheço e não me adapto as aberrações humanas... Vê? Parou, saltou e abriu o porta-malas.
Velozes então se avizinham.
A porta aberta. O corpo envolto num saco plástico gigante. O rosto mulato que se volta, perplexo. A imobilidade dos gestos. A não reação e... A prisão!

3
- Sargento, a missão está cumprida. O tarado tá preso.
Bebem no bar “Recanto do Elias”, que se mantém cheio, nessa sexta-feira, pela madrugada.  
- É isso aí, Carlinhos. Vamos esperar...
- O quê sargento?
Então esse pega o copo e tomando devagar a cerveja, responde, sem fitá-lo:
- Esperar que não se solte.
- Mas...
- Carlinhos, meu prezado auxiliar, o homem é rico e infelizmente, quem tem dinheiro pode, consegue tudo. Tudo!
O auxiliar nada responde. Concentrado. Pensativo. E bebe a cerveja.
No balcão, seu Elias segue o movimento do seu estabelecimento. Ah, tem mesmo de encontrar outro salão para expandir o comércio. O Pedro não está mais dando “conta” do trabalho... Tem sim, de contratar um novo garçom. Faturar. Ainda bem que não mais apareceu jovens louras, bonitas, assassinadas por aí às sextas-feiras! Mas...
O carro vermelho estaciona ao meio-fio da calçada defronte, a porta se abre e desce o homem corpulento, morenão, bem vestido, acompanhado da mocinha esguia, loura, de longos cabelos, calças justas azul, blusa lilás decotada, sensual. Será que... Tudo irá recomeçar? Não, assim também é demais! Pensa seu Isaías.
O casal adentra.
Seu Isaías baixa a cabeça, evitando-o, como se assim fugisse às próprias reflexões, enquanto Pedro, solícito, se achega à mesa ocupada pelo casal e, sorrindo:
- Às ordens.
Paulo Valença