sábado, 9 de julho de 2011

Os filhos da angústia


1
Estaciona o automóvel. Salta. Em passos decididos se aproxima da mesa recuada, próxima ao balcão.
Puxando a cadeira, senta-se.
O garçom Ivan então se achega, sorrindo:
- Vai querer a dose agora doutor?
Ele sério, sem erguer o rosto responde:
- Traga. Reforçada.
- Tudo bem.
O garçom se afasta e debruçando-se sobre o balcão, solicita a dose ao gordo Manuel, o proprietário.
Fora a noite envelhece indiferente a tudo, na marcha natural de sempre.
Logo, o homem toma a bebida devagar. Pensativo. Quanta vez já freqüentou esse bar assim à noite de sexta-feira? Quanta noite ainda aqui chegará, para beber, na busca de esquecer a semana trabalhada, relaxar e evitar (como se pudesse!) o retorno à casa, com a esposa silenciosa, magra, num rancor que ele não sabe o motivo, numa esquisita e doentia indiferença a sua presença?
- Tudo bem Glória?
- Tudo.
A voz esmorecida. O rosto fugitivo. O olhar ausente... Sua mulher está doente. Sim, a maneira como está se portando não é normal. Precisa levá-la ao médico, antes que...
- Esquece cara. Por enquanto, esquece!
Explode a angústia e, num gole rápido, tomando a bebida, esvazia o copo e acena ao Ivan, pedindo outra dose.
As mesas vão se enchendo de casais, na maioria de jovens. As vozes, o tilintar de talheres, o arrastar de cadeiras se faz ouvir num som que ganha o ambiente de descontração.
- A dose doutor.
- Certo Ivan.
O garçom espera. Conhece bem como ele procede após a primeira dose.
- Traga-me um prato com camarões grelhados.
Ivan sorri, aquiescendo, e retira-se, indo outra vez ao balcão. Sim, precisa servir bem ao homem, pois depois terá a gorjeta que compensa o empenho do atendimento.
- Seu Manuel, camarão grelhado pra o doutor ali.
- Certo, meu rapaz.
Então se volta à abertura na parede em formato de janela e grita:
- Sai um prato de camarão grelhado!
As vozes. As risadas. O tilintar dos talheres. O arrastar de cadeiras. Tudo prossegue num som pesado que domina o ambiente.
A Glória estará acordada, na sala, defronte a TV, na repetição das sextas-feiras anteriores? Provavelmente encontrar-se-á... Por que de repente a nossa vida se altera, na metamorfose que nos faz sentir pequenos ante a própria angústia? Ah, o ser humano é mesmo pequenino...

2
Ela chega e ocupa a mesa logo a entrada do bar-restaurante. Com disfarce analisa o ambiente de mesas com casais, na maioria adolescente. Estuda quem a agradará como parceiro do amor e, se descoberto, então, com o charme de mulher jovem, morena e bonita tentará seduzi-lo ao leito do motel próximo, a beira-mar. Sim, é uma profissional do sexo, do pecado.
As noites de sexta-feira são as da caça, na guerra pela sobrevivência material.
Ivan atento ao seu trabalho de servir, aí se avizinha e, sorrindo:
- Vai querer o quê moça?
Ela se volta, também sorrindo e, com os olhos negros, grandes, fitando-o:
- Me traga uma cerveja bem geladinha e uns bolinhos de bacalhau.
- Tudo bem.
Retrocede ao balcão, onde pedirá ao patrão o solicitado pela jovem morena, bonita, tipo beleza nacional.
- Diga Ivan.
- Uma cerveja no “ponto” e um pratinho de bolinhos de bacalhau.
- É pra já, meu rapaz.
As mesas cheias. Os casais alegres, curtindo a noite que já vai alta. Tudo numa seqüência conhecida. Será que perdeu a viagem, a conquista programada? Os olhos analíticos procuram. E, de repente, param no homem solitário à mesa recuada, próxima ao balcão. Alourado. Magro. Bem vestido. Os gestos calmos. O rosto tristonho. A dor se exibindo, disfarçando. A mão que ergue o copo. Os olhos que se voltam e... Encaram-na numa indagação.
Ela sorri. Entendendo-o. Vencendo-o.
- A cerveja e os bolinhos moça.
A bandeja com a bebida e o prato como o “tira-gosto”.
- Sim, ponha na mesa.
Ivan assim procede e mais uma vez se ausenta, entregado ao trabalho de atender aos freqüentadores, os donos das sextas-feiras, no Bar Recanto do Lalau.
O alourado erguendo a mão, faz o gesto de indagar se pode vir para a mesa e a morena sorri, balançando a cabeça, aquiescendo.
Sim, a conquista está garantida. Ganhou a sexta-feira.

3
De repente, como se despertasse para o mundo prático, ela se indaga, preocupada. Por que Rivaldo demora em chegar, terá lhe acontecido algo? Com tanta violência... Mas, ele não tem o celular para lhe avisar de qualquer anormalidade? E também lhe vem de súbito, o vazio que ultimamente sente de tudo, como se a própria existência não mais lhe tivesse sentido, como se vivesse sem um objetivo...
Ergue-se nervosa do sofá e na varanda do primeiro andar se debruça no parapeito, buscando ver o carro prateado chegando, o portão se abrindo, trazendo o marido.
O frio circula. A madrugada vai alta. As mãos irrequietas penteiam os cabelos castanhos grisalhos para trás. Enerva-se. Uma coisa subindo, dominando-a... E, sem se conter, grita:
- Rivaldo!
Embaixo, na rua transversal, o automóvel prateado surge, com o homem sentindo-se outro, leve, após o prazer desfrutado no leito do motel com a mulher nova, morena, bonita.
Aí percebe na varanda, a figura magra, imóvel, como se fosse à encarnação da angústia.
- Coitada de Glória...
O portão então se abre e devagar o carro adentra.

Paulo Valença

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4 comentários:

  1. Paulo, já pude ler mais essa obra... e meu comentário ainda não é definitivo... quero antes de fa`zê-lo, dar mais uma analisada nos outros textos que você escreveu, "Sexta-feira assassina" e o "O mal renascerá?" e juntamente com esse quero aplicar algumas técnicas sociológicas e fazer o meu comentário. De ante-mão quero só dizer que gostei muito e que estarei indicando com certeza a todos os meu amigos, seguidores e sócios dessa Sociedade.
    Carpe Diem!
    Kleber J G Martins

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  2. Kleber,
    Aguardo sim, seu comentário que, de já, bem sei que será de grande importância à minha carreira de ficcionista.
    Obrigado!
    Abraços,
    Paulo Valença.

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  3. Paulo,

    Acabsamos por sermos todos personagens dessa vida de angustia , que nos leva ao escoderijo dos nossos lares, com as portas trancadas para um viver harmonioso.

    Bjns.

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  4. Solange,
    Sim, vivemos "com as portas trancadas"... Receosos de um inesperado ataque da violência que, infelizmente, campeia em nosso País, sem uma solução prática das autoridades.
    Grato pelo ótimo comentário.
    Abraço carinhoso.

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