quarta-feira, 13 de julho de 2011

Enganosa fuga


Os operários comentam o quanto o seu Jarbas é “gavião”.
- O homem é demais. Menina bonita termina “dando”, se não... Vai pra rua!
As gargalhadas de deboche, o machismo que impera no meio de pouca cultura, alheamento ao sentimento humano. A conversa continua, pois adoram contar proezas dos outros e também se vangloriar. E José, o negro magro, alto, impressor:
- Também Mulatinho, o cara é chefe, ganha bem, ainda é parente do pessoal da Diretoria...
O outro que é baixote, cabeça oval, raspada, a fisionomia grosseira sorri malicioso e silencia.
Bebem, sentados em bancos redondos presos à calçada estreita, debruçados no balcão também estreito que dá para o interior reduzido da barraca de Genuíno, o proprietário.
Pela rua que se interpõe entre o estabelecimento e as residências defrontes, passam carros, motos e ônibus, já em número reduzido ante o avanço da noite.
- Sabe José? Ele tá certo, aproveitar enquanto tem idade, saúde e dinheiro, tudo passa. É uma fase...
Mulatinho segura o copo e bebe devagarzinho, refletindo e, responde:
- É colega, aproveitar enquanto pode. Na vida, é mesmo como você diz, tudo passa...
Genuíno, homem alto, gordo, segue a cena, discreto. Conveniente. Respeita o “papo” alheio, faz parte de sua conduta comercial. Não misturar as coisas. Aprendeu com o mundo. Nada como a vivência para nos educar...
- Genuíno outra geladinha.
- Certo.
Então se volta ao refrigerador, abre-o, retira a garrafa e a põe sobre o balcão.
- Aqui a mais geladinha.
- Você é um arretado Genuíno! Prepara um “tira-gosto” pra gente.
- Que vai querer José? Tem “sururu-ao-coco”, “mão-de-vaca”, e “arrumadinho de charque”.
O negro sorri:
- Hoje a barraca tá completa, tem de tudo! Bota o “arrumadinho”.
- Vou esquentar.
A fábrica aí apita e operários cruzam a Portaria, em grupos, de regresso aos lares.
A parada dos ônibus se enche de repente com homens e mulheres à espera de condução.
Pela rua, o movimento dos veículos diminui.
- Tou pensando Mulatinho... A galeguinha bonita, uma novata gostosinha que tá saindo com seu Jarbas...
- Sim? O dinheiro José faz tudo. Uma menina daquela sair para fazer amor com um cara vermelho, gordo, baixote, feioso...
- É mesmo, o dinheiro faz tudo!
Genuíno então lhes interrompe a conversa:
- O “arrumadinho” no capricho.
- Ok Genuíno. E traz outra “lourinha-suada”.
Homens ocupam os outros bancos às laterais, e pedem bebida. Descontraem-se aos poucos.
Genuíno se move, apressado, atendendo-os.
A indústria convoca a nova turma através da sirene estridente, prolongada.
Quanta vez escutou-a no decorrer dos anos? Quantas vezes... 
- Tás aí calado, José... Pensando em quê, na “morte da borrega?”.
O sorriso como resposta e a mão que segura o copo, tomando a cerveja, na descontração de não pensar na mulher em casa, na cadeira de rodas...
- José pra mim tá bom. Vamos zarpar?
- Certo, Mulatinho.
Aí grita para Genuíno:
- Tira a conta da gente. Genuíno.
- Mas, vocês tão partindo? Hoje, tão muito fracos!
Então segura o bloquinho sobre a mesa ao lado, retira a caneta esferográfica do bolso da camisa e soma a despesa.
Maristela ainda tão nova... Maldita queda! A coluna afetada. A realidade cruel. Por que tem de sofrer com a mulher tamanha tragédia? Por quê...
- Aqui tá o gasto.
José desperta ao presente e quita a despesa, enquanto ao lado, Mulatinho sente-se bem, em paz com a noite, a vida, sob o efeito do álcool, que lhe entorpece a alma, numa enganosa fuga...
Afastam-se da barraca.
- Quer uma carona Mulatinho, meu carro tá ali no oitão da mercearia do Luis Carlos.
- Quero não, agradeço. Vou pegar o ônibus, vou direto pra “Linha do Tiro”.
 - Entendo. Até amanhã! 
- Até José, vai com Deus.
- Fique com ele.
Na rua um ou outro carro ou moto transita.
A madrugada se avizinha.
Da barraca de Genuíno vem a gargalhada alegre, na descontração da bebida.
José cruza a rua e se encaminha à direita, onde no oitão da mercearia, está o seu carro. E Mulatinho se direge à parada dos ônibus, na calçada oposta, à esquerda.
Maristela já está dormindo ou esperando-o chegar? Os olhos grandes, negros. O silêncio que diz tudo, na resignação à enfermidade...
Solta um palavrão, abre a porta do carro e entra, para ir ao encontro do que o aguarda, à cena de todas as sextas-feiras, de quando deixa o emprego, toma a cerveja em companhia do colega Mulatinho, buscando não pensar...
- Como se eu pudesse!
Liga o carro e sai devagar. Para que pressa agora?
Ganha a rua praticamente deserta.
No “abrigo” dos coletivos, Mulatinho espera a condução que tarda, como sempre.
- Esses ônibus demoram demais!
Reclama a operária morena, envelhecida ao lado.
Mulatinho aquiesce, solidário, colega da fábrica e dessa espera enervante.
- E o que é pior é que não se ver nenhuma solução.
- Também seu Mulatinho, o povo não reage a tudo se acomoda...
- É isso aí, infelizmente.

Paulo Valença


Leia também outras obras do autor:

2 comentários:

  1. Paulo,

    Sempre seus contos nos remete ao mundo real, e tentarmos fugir dos nossos reais problemas é dormirmos no frio gelado das emoções com os pés para fora do cobertor...

    Beijos.

    ResponderExcluir
  2. Solange,
    Mais uma vez você tece um comentário que incentiva-me a continuar escrevendo, daí a minha admiração e agradecimento.
    Abraço carinhoso.

    ResponderExcluir